segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Fisiologia da Ação Muscular Negativa

Abordagem Fisiológica do que é Causado pela Ação Negativa e da Resposta Adaptativa da Musculatura a Este Tipo de Treinamento

Este artigo representa um estudo, com base em artigos científicos, sobre o desempenho da ação negativa do músculo no desenvolvimento da hipertrofia muscular. Esta ação muscular parece apresentar algumas vantagens sobre os outros tipos de ação quanto à hipertrofia e estas vantagens estão relacionadas com suas características mecânicas próprias. O foco aqui será dado à fisiologia da ação muscular negativa e aos processos adaptativos da musculatura esquelética aos treinamentos que envolvem tal ação muscular em diferentes velocidades.

“Negativa” é designação para um músculo ativo que é alongado por uma carga imposta. Esta designação é baseada no trabalho realizado. Assim, para um músculo que é alongado por uma carga externa e que resiste a este alongamento, o trabalho seria absorvido ou negativo, já que está se opondo ao movimento. Tal ação também é chamada de excêntrica. Em contrapartida, a ação muscular que favorece o movimento é chamada de positiva ou concêntrica e a estabilizadora de isométrica.

Um trabalho que utiliza unicamente uma ação ou outra é difícil de ser elaborado e praticado. Quase todos os tipos comumente utilizados de treinamentos são uma combinação das ações concêntrica e excêntricas, e algumas vezes algum trabalho isométrico é incluído. Apesar disso, de forma geral a maior parte da atenção é voltada aos esforços positivo e estabilizador dos músculos esqueléticos (estabilizador em menor grau), respectivamente ação concêntrica e isométrica. Entretanto, muitos estudos indicam um equívoco ao negligenciar a fase negativa , porque esta parece ter maior influência no aumento de força e massa.

Maior Tensão Muscular, Maior Estímulo

O aumento de força e massa (hipertrofia) é um ajuste adaptativo ao treinamento de força. O processo de hipertrofia é complexo com fatores hormonais, mecânicos e metabólicos envolvidos. Dentre estes fatores, o mecânico será tratado aqui. Conforme citado no artigo Criando uma hipótese explicativa para o desenvolvimento muscular, essa adaptação é “acionada” após a ocorrência de microlesões que a musculatura sofre com o treino intenso. Resumidamente, essa adaptação citada neste artigo pode ser descrita como se segue: o dano muscular causado pelo exercício induz a ativação, proliferação e diferenciação de células satélites pelo músculo e este processo está relacionado à hipertrofia. As células satélites, que estão em estado dormente, são ativadas em caso de dano aos componentes da estrutura da célula muscular, se dividem (proliferação) e se diferenciam como um mecanismo reparador do dano causado. As células satélites não dão origem a uma nova célula muscular, ou seja, não geram hiperplasia, mas podem contribuir para aumentar a síntese proteica no interior da célula muscular pois sua migração para o interior da célula muscular aumenta os núcleos celulares e, assim, é maior a quantidade de material genético disponível para a síntese de proteínas que irão compor miofibrilas substitutas às danificadas e também novas (aumento de força como resultado adaptativo), aumentando o diâmetro dos sarcômeros e consequentemente o espessura da célula muscular e a capacidade de força.

Assim, o dano muscular é considerado um estímulo à hipertrofia e para obter este estímulo com o treino, é buscado um grau de intensidade. Como fatores responsáveis pela variação de intensidade do exercício, o número de séries e de repetições executadas, o intervalo de descanso entre séries e a frequência de treinamento são as variáveis normalmente consideradas. No entanto, tem sido demonstrado que o tipo da ação muscular e a velocidade de execução do movimento são variáveis importantes e que também devem ser consideradas. O grau de tensão da ação muscular tem influência direta no dano e, consequentemente, na resposta adaptativa ao treinamento. E conforme será exposto, o grau de tensão é influenciado pelo tipo da ação e pela velocidade. Na ação negativa o músculo gera tensão maior que as outras ações resultando em mais microlesões à musculatura e maior resposta adaptativa. E a velocidade de execução também tem influência no grau de tensão.

Estudos da fisiologia da atividade muscular humana concêntrica mostram que a tensão desenvolvida por um músculo ativo diminui à medida que a velocidade de encurtamento aumenta (Gráfico 1). Se a força externa superar a capacidade do músculo de resistir ativamente, o músculo se alonga (ação muscular excêntrica) e esse alongamento “ativo” (pois os músculos estariam resistindo) gera tensão que excede aquelas registradas para a ação muscular concêntrica. A tensão aumenta até certo grau com o aumento da velocidade com que a carga externa se move ao vencer a resistência muscular e se estabiliza depois disso, mesmo com aumento de velocidade.


Modelo das “Pontes Cruzadas”

A já citada teoria das pontes cruzadas, no artigo A Ciência por Trás da Contração Muscular, pode explicar a relação força-velocidade para a ação positiva e, em parte, para a negativa. Quando um músculo é ativado, ocorre a ligação entre a miosina e a actina. Normalmente, as pontes cruzadas se formam e o encurtamento ou tensão do sarcômero resulta à medida que a energia potencial armazenada na miosina pré-energizada é transformada nos eventos mecânicos da ação da ponte cruzada (tensão ou encurtamento). Em qualquer dos tipos de ação, a atividade do músculo é combatida pela força da carga que tende a alongar o sarcômero. Durante uma ação positiva, o aumento da velocidade de movimento diminui a tensão produzida no músculo, pois reduz o tempo disponível para a formação das pontes cruzadas. Se a carga é “jogada” ou elevada com muita velocidade, a carga tende a continuar o movimento por impulso e não impõe resistência em boa parte da amplitude. Já com a diminuição da velocidade, a força gerada aumenta e níveis máximos de força são alcançados quando a velocidade da ação muscular é igual à zero(ação isométrica). Durante a ação negativa, se imediatamente após ocorrer a reação de ligação a ponte cruzada for puxada à força para trás, a ligação actina-miosina se romperia antes que o deslizamento proporcionado pela ponte pudesse ocorrer. Esta separação da ponte cruzada exigiria mais força do que a registrada no ciclo normal da ponte cruzada.

Durante uma ação excêntrica, o músculo então é capaz de gerar maior quantidade de tensão quando comparada às ações concêntrica e isométrica. Isso significa que se alguém consegue levantar um peso máximo do chão e colocá-lo sobre uma mesa (ação concêntrica), essa mesma pessoa conseguirá abaixar da mesa até o chão (ação excêntrica) um peso um pouco maior. Parte dessa maior força pode ser explicada por essa maior tensão descrita acima e explicada pelo modelo de pontes cruzadas, mas isto também ocorre porque além dessa contribuição ativa dos elementos contráteis, a ação excêntrica apresenta uma contribuição passiva dos elementos constituintes da estrutura muscular na geração de tensão. Quando um músculo é alongado, existe a resistência oferecida pelos elementos elásticos (tecidos conjuntivos, por exemplo) os quais constituem a estrutura do músculo esquelético. Esta resistência gera uma tensão passiva, a qual aumenta na medida em que o músculo é alongado, como um mola. Então, a tensão passiva soma-se com a tensão ativa gerada durante uma ação excêntrica, resultando numa maior produção total de força (no gráfico 2 é apresentada uma curva de tensão ou força na ação negativa em relação ao comprimento muscular).


Voltando ao ponto em que a ponte cruzada foi impedida de produzir encurtamento muscular (pelo alongamento causado por carga externa), a miosina energizada, que não perdeu sua energia potencial, só poderia se unir novamente para ser separada novamente se a carga externa fosse mantida. Cada uma dessas reações de ligação-separação produz uma tensão registrada (resistência ao alongamento) pelo músculo, mas sem consumo aparente de energia porque a ponte cruzada não circulou, mas continua permanecendo na forma de alta energia. E, repetindo, a tensão registrada em um determinado comprimento do sarcômero seria maior do que durante a ação concêntrica e até mesmo maior do que na isométrica. Por outro lado, se o estiramento fosse realizado a velocidades muito lentas, algumas das pontes transversais teriam tempo para percorrer o ciclo (“encurtar”) e reduzir a tensão líquida registrada em resposta ao estiramento assim como consumir energia.

Então a velocidade da ação muscular também afeta a tensão muscular em ambas as ações positiva e negativa, assim como o consumo de energia. Durante a negativa, a força muscular gerada supera os níveis obtidos na isometria, e tem valores aumentados progressivamente com a velocidade, pois esta afeta a capacidade de atuação das pontes cruzadas que são “descoladas” antes de promoverem o deslizamento de actina e miosina, gerando maior tensão no músculo. A partir de certo ponto, a tensão (em função da velocidade) fica constante na ação excêntrica, ao atingir o maior número de descolamentos possível, como indicado no gráfico 1.

O modelo do descolamento da ponte cruzada então é útil para compreender como a ação negativa pode oferecer mais estímulo por causar mais microlesões devido ao alongamento muscular forçado de um músculo ativo causar mais tensão. Também é útil para entender porque a ação negativa, dependendo da velocidade, não faz muito em melhorias cardiorrespiratórias, visto que que o consumo de energia é reduzido.

Diferenças no Recrutamento de Fibras Musculares

Existem indícios de que o padrão de recrutamento muscular (isto é, a ativação das diferentes unidades motoras) durante a ação negativa não respeita o chamado “princípio do tamanho”. O princípio do tamanho afirma que, durante uma atividade física, as unidades motoras menores, com menor capacidade de produção de força são recrutadas primeiramente. Para aumentar a produção de força no desenrolar do trabalho, unidades maiores e mais fortes são recrutadas posteriormente. Porém, na ação, esse padrão parece se reverter, ocorrendo o recrutamento das unidades maiores no início do trabalho. Estas unidades motoras são compostas por fibras musculares do tipo II, as quais respondem muito bem aos estímulos do treinamento de força quando comparadas as fibras do tipo I. Tal diferença de resposta ao treinamento foi descrita no artigo Características Fisiológicas Envolvidas no Desenvolvimento das Panturrilhas. As fibras do tipo I, também conhecidas como fibras de contração lenta, são basicamente responsáveis pela manutenção da postura corporal diária. Estas fibras geram menor tensão, mas por longos períodos de tempo. Já as fibras do tipo II são conhecidas como as fibras de contração rápida as quais produzem alto grau de tensão mas entram rapidamente em fadiga. É interessante notar que a hipertrofia decorrente do treinamento com predominância da ação negativa se manifesta especialmente neste tipo de fibra. Assim, essa maior resposta hipertrófica pode também estar associada ao recrutamento seletivo das unidades motoras compostas por fibras musculares do tipo II durante a ação negativa.

Outra questão relevante, voltada ao recrutamento, é que a maior tensão muscular gerada nas ação negativa também está associada a ativação de um menor número de unidades motoras (Gráfico 3) o que impõe um maior estresse mecânico sobre cada uma das fibras musculares ativas. Isto resulta na maior ocorrência de danos muscular, reforçando o exposto anteriormente sobre a ação negativa estimular mais a hipertrofia por causar mais microlesões.


Conclusões

Pelo estudo realizado e sintetizado neste artigo, podemos concluir que as características distintas da ação negativa em comparação com outros modos de ação muscular são a causa de adaptações específicas a este tipo de treinamento. Um conjunto significativo de evidências sugere que, em comparação com a ação positiva, uma atenção na negativa promove maiores ganhos de força e massa muscular, presumivelmente devido ao estresse mecânico único gerado nos músculos excentricamente trabalhados.

A velocidade de execução também afeta o estresse causado, como citado. Apesar de não ter ficado muito claro, deve ser entendido que essa comparação provavelmente não é feita com mesmas cargas. Ou pelo menos não no mesmo nível de fadiga muscular. Por exemplo, não parece lógico pensar que, se um trabalho negativo é realizado com uma carga tal que o praticante consiga exercer resistência suficiente para executar o movimento bem lentamente, ao executar rapidamente com a mesma carga (e num ponto em que o músculo esteja no mesmo nível de fadiga) seria gerado maior estresse. Se for capaz de executar o movimento lentamente com uma carga, executar rapidamente uma negativa com a mesma carga e no mesmo nível de fadiga seria simplesmente deixar de oferecer resistência para o peso descer mais rapidamente. Acredito que devemos concluir o seguinte: uma carga que consiga vencer o nível de resistência imposta pelo praticante irá levar a velocidade maior de movimento, visto que ele não conseguirá oferecer muita resistência, mesmo o músculo estando ativo e tentando "frear" ao máximo a descida. Neste caso, as pontes cruzadas seriam “descoladas” e a maior tensão possível seria gerada. Conforme descrito por Arthur Jones em seu artigo para a Athletic Journal e traduzido aqui, “Treinamento de Força Negativo Acentuado”, pode ser impraticável para muitos praticantes o uso desta forma de treinamento, visto que ele não conseguiria erguer a carga que causaria o efeito citado acima, pois como visto a força negativa é maior que a positiva. Há máquinas que tornam isso possível mas não são muito comuns e com certeza são caras. Também seria possível que outras pessoas ajudassem a erguer o peso e deixassem o praticante controlar a descida sozinho. Outra forma mais prática (e mais segura, por usar cargas não tão pesadas), conforme sugerido por ele,  seria acentuar a parte negativa executando exercícios com carga que seria possível erguer (ele sugere usar até 70% da carga que normalmente seria utilizada) com ambos os lados (direito e esquerdo) e deixar descer com apenas um lado atuando. Na próxima descida, alternar o lado. Realizar movimentos lentos, principalmente na descida para fadigar a musculatura até que nas últimas repetições, seria atingida uma “falha negativa”, um ponto em que não seria mais possível criar resistência suficiente para descer a carga lentamente. Assim, a velocidade da parte negativa seria maior, mesmo com o praticante exercendo o máximo de força de que ele capaz, provocando os efeitos citados ao longo deste artigo.


Fontes:

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